<$BlogRSDURL$>

terça-feira, março 30, 2004

Frase do dia: “Um comboio pode passar todos os dias à mesma hora mas nunca passa no mesmo dia”.




“Infecção virulenta de doença recente nos olhos da actriz que no seu palco representa os dramas de Brecht tu esperas o intervalo e as seringas de cultura distribuídas lá fora pela camioneta laranja cedida amavelmente pelo Estado Providência tanto faz não importa a agulha penetra mais uma vez a veia o teu cérebro incha és o balão que rebenta na casa de banho em suaves sonhos de hélio alheia indiferente a plateia aplaude.
Bis!!!”



RMM

segunda-feira, março 29, 2004

Frase do dia: “Em sombras a luz porque ensombras a luz?!”


Nada a fazer, caminhamos fora do rumo do que seria esperado quando já não há nada a esperar. Assim o fim trágico, lábios cortados, copos e cigarros, anjo da morte no funeral da morte do anjo. Nada a fazer, mais uma vez, apenas, o mais nada a fazer que não significa mais nada. O fim esperado dócil das histórias trágicas dos amantes que fogem ao acaso nos acasos incompletos de moscas caindo no prato de sopa.
Nada a fazer, há que fingir que é fingimento a não existência da dor, nada a fazer, mais nada a fazer.
Escombros incompletos fragmentos do peito que rasga para fora, nada a fazer, o cavalo de fogo sem cascos dourados, nada a fazer, apenas a continuação da frase que não quer dizer mais nada.
Espera-se o politicamente correcto e os sorrisos envenenados de remédio para ratos, nada a fazer, o salutar convívio das pessoas que não se falam, mas que se olham continuamente mais de oito vezes numa festa rasca, nada a fazer, a primavera no seu sufoco engasga-se à terceira garfada, a flor que cresce no peito de quem escreve em Fevereiro a carta de despedida para se matar em Março, mas de olhos vendados, para fora deste mês, nada a fazer, mais um dia no calendário e tudo assim, ao mesmo tempo, deslocado, nada a fazer, a navalha em sangue no rosto desfigurado do tempo, nada mais a fazer, a mesma história que se repete e repete e na sua repetição vai perdendo a piada a piada, nada a fazer.
Nada a fazer, cada segundo que passa constrói um abismo de silêncios, um labirinto de ausências, entre tu e eu, se é que isso ainda existe e tenho dúvidas se é que a própria dúvida existe, nada mais a fazer, mais nada.



“Noite falta de talento do que escreve estas histórias banais de dor de corno espera o telefonema de alguém que não telefona pois já morreu o tempo passa por cima destas linhas com a consciência de que nenhuma das palavras lhe sobreviverá está sozinho não é novidade para a garrafa de vodka mas está demasiado frio e todos os cafés fecharam.
Espera pelo amanhã quando este se lembrar de ser ontem.”


RMM

sexta-feira, março 26, 2004

Frase do dia: “Amor entre mal ditos”.



A CONVERSA QUE SE SEGUE É DA i RESPONSABILIDADE DOS QUE SE AUTOMEDICAM, e foi gravada em segredo num dia mais perto do amanhã do que do ontem

- E então? O que é que tens feito?
- Nada de especial, perco-me por aqui e por ali. Ausente de todas as lógicas.
- Bem, vejo que o teu discurso continua igual. Mas como é que te sentes, isto é, se já te sentes melhor daquela cena.
- Não faço a mínima ideia do que estás a falar.
- Ora, do que é que havia de ser? Aquilo que me contaste há uns dias atrás lá no Tropical...
- Não faço a mínima ideia do que estás a falar.
- Bem, já vi que não queres falar sobre isso.
- Falar de quê?! Não sei do que é que estás a falar!
- Ok, se calhar não era importante.
- Não sei, não sei o que é. Então e tu? Sempre a encontraste? Já tiveste coragem para a convidares a sair?
- Convidar quem?
- Ora, quem?! A tua amiguinha!! Quem é que havia de ser?
- Não estou a ver quem seja. Não faço ideia.
- Estás-te a fazer de parvo? Quando te encontrei há uns dias só falavas dela.
- Dela quem!? É que não faço a mínima ideia de quem estás a falar!


Tempo de um poema...

“A apatia do ódio dos sonâmbulos fez-me sentar no telhado o ninho dos abutres caiu e eu fumo no olhar da criança que se esconde atrás de um vaso na varanda de qualquer maneira eu ainda sonho o salto do falcão picado de encontro ao peixe no lago dos patos os gansos também têm penas a imagem serena do cisne não contraria o desgaste das águas em que Hórus mergulha de corpo e alma mas sem asas razias para o céu de nenúfares podes-te sentar também eu ainda sou roxo e vermelho e preto deus Hórus de braços abertos sobre as rosas de Ísis que era uma miúda de catorze anos quando a conheci dormia sobre um telhado e dançava sobre o sonho saltando”.


RMM

segunda-feira, março 22, 2004

Frase do dia: “Vamos trepar às nuvens!!”



22 de Maio de 1869


Senhor:


Recebi precisamente ontem a vossa carta datada de 21 de Maio; era vossa. Pois bem, confesso que, infelizmente, não posso perder este pretexto de vos apresentar as minhas desculpas. E eis porquê: porque se vós, aqui há dias, me tivésseis anunciado, na ignorância do que de aborrecido pode suceder nas circunstâncias em que a minha pessoa se vê, que os fundos estavam prestes a esgotar-se, eu ter-me-ia coibido de lhes tocar; e teria, decerto, sentido tanta alegria em não escrever aquelas três cartas, como vós em não as terdes lido. Resolvestes fazer vigorar o deplorável sistema de desconfiança vagamente prescrito pela bizarria de meu pai; mas também adivinhastes, e bem, que as minhas dores de cabeça me não impedem de medir com atenção a difícil situação em que até aqui vos tem colocado uma folha de papel de carta vinda da América do Sul, cujo principal defeito é a falta de clareza; pois não levo em linha de conta a inconveniência de certas observações melancólicas que facilmente se perdoam a um velhote e que, à primeira leitura, me pareceram ter o ar de vos impor, talvez para o futuro, a necessidade de sair do vosso estrito papel de banqueiro, perante um cavalheiro que vem morar para a capital...
... Desculpai, Senhor, tenho um pedido a fazer-vos: se o meu pai enviar outros fundos antes do dia 1 de Setembro, altura em que o meu corpo fará uma aparição diante da porta do vosso banco, podereis ter a bondade de me informar? De resto, estarei em casa a qualquer hora do dia; mas não tereis mais do que me enviar um simples cartão, que eu o receberei, segundo todas as probabilidades, ao mesmo tempo, por assim dizer, que a menina que me tocar à campainha, ou até antes, se estiver no vestíbulo...
... E tudo isto, repito-o, por uma bagatela insignificante de formalidade! Apresentar dez unhas de fome em vez de cinco, é uma bela partida: depois de muito ter pensado, confesso que ela me pareceu eivada de uma notável soma de importância nula...


Conde de Lautréamont



“Outra vez um domingo a mesma tarde carregada de ausências solitárias que dançam a valsa dos fantasmas lá fora os pássaros sapateiam sobre o abismo das vidas supostamente cheias a minha vida como um copo que se bebe a tua vida a vida dela que eu não conheço apenas sei que tem um cão grande e branco como um fantasma que ronda os delírios nos canis onde outros esperam pela certeza da morte mas hoje neste domingo e sempre sobrevive apenas a incerteza dos pássaros de não saber que abismo será então ela não obstante o cão demasiado bela demasiado longe como uma flor qualquer de certeza que não para a tua cabeça corrupta poluída de cancelas velhas e de diabos novos de cancelas novas de diabos velhos onde os pássaros sapateiam no abismo e é tão longe e tão igual o amanhã e o hoje”.


RMM


sexta-feira, março 19, 2004

Frase do dia: “Acreditar no amanhã mesmo que não exista amanhã nenhum”.


Reflexos e reflexões incondicionadas mas com condições


Hoje em dia discute-se bastante sobre se se deve ser pró ou anti EUA como se isso fosse algo que traduzisse, em si, uma grande questão filosófica. Mas na realidade não é. Traduz, isso sim, apenas uma simples demagogia retórica e não creio que seja mais do que isso. Os EUA não são nem o grande Satã nem o patamar mais elevado do estado do capitalismo selvagem. Como pessoas até são medianamente incultos (segundo os “nossos” padrões), em termos de política interna são realmente básicos e em termos de política externa são medíocres-responsabilizam os Outros pelos seus próprios erros, apenas conseguem ver os efeitos sem nunca conseguirem descortinar as causas (a exemplo de qualquer bom agente de autoridade). O que caracteriza fundamentalmente os EUA é a forma como a sua dominação é feita-através de uma cultura parasitária que apenas esconde uma lógica de dominação implícita. Se forem pessoas que, tal como eu, estão agora a chegar aos 30 devem-se lembrar do peso que filmes como Rockys ou Rambos tiveram sobre a nossa geração. A pseudo-cultura americana, que todas as sociedades, ocidentais ou não, comem todos os dias na televisão, no cinema, nos fast-food, é que realmente mina porque povoa o nosso universo de referências e de valores que não são, de todo, inocentes. Grande parte do nosso imaginário, principalmente quando somos jovens no início do processo de socialização, vem daí. Dizem que isso são os efeitos da globalização? Em parte. Mas a globalização é mesmo isso: há uns que dominam e outros que são dominados. Só que uns são dominados com bombas e outros são dominados com chocolates e pipocas. Desta maneira a dominação cultural torna-se, sem se saber qual é o reflexo da outra, numa dominação política. Acho que o sr. Durão e o sr. Portas viram muitos filmes do Rambo quando eram piquenos, só assim se explica a verdadeira atitude de putos ranhosos a quererem atenção que tiveram. Não creio, realmente, que o "nosso" (salvo seja!!) PM tivesse, de todo, uma visão política e estratégica fundamentada-ou seja, participar no saque do Iraque-empresas de reconstrução, petróleo, interesses comerciais, etc. Não creio, não tem visão estratégica nem nenhum projecto para o país-como qualquer outro carreirista político.
Discute-se muito sobre a questão da insegurança e os tais chamados terroristas, que é o mesmo que tentar lidar com as consequências sem se tentar lidar com as causas. É o mesmo que tentar despejar baldes de água de uma banheira que está a verter sem antes se pensar em fechar a torneira. Depois vendem slogans imberbes como “Pelo mundo livre!”, “Pela Democracia”, como se estivessem a anunciar uma qualquer espuma de barbear. Nesse sentido, desprovidos da própria essência, tornam-se meros golpes publicitários e de marketing. E como as pessoas se habituaram, quase em exclusivo, a esta forma de comunicar... dizem que sim, compram. É tudo muito simples. Uma grande treta.
A própria democracia é isso, nada mais que um slogan. Debitado pelo Stallone ou pelo Jorge Sampaio, não importa, nada mais que um slogan. Nada mais que um produto vendido pela lógica mercantilista e que muitos têm que pagar com sangue e sangue. Converte-se todos os homens a um modelo único de comportamento e obediência, a exemplo que o cristianismo, ou até o islamismo, tentaram fazer. Antes tinha-se que se ser um bom católico, hoje é preciso sermos democratas... mesmo que desprezemos toda a novela partidária e as personagens que ela promove a estilo de novela da TVI.
Mas, sem sombra de dúvida, para não nos alongarmos mais, os EUA são mesmo um império. Em certos pontos chegam a lembrar o Império Romano e a perderem para este na comparação. Enquanto que os romanos, nos territórios conquistados, faziam valer a Pax Romana-permitindo aos povos conquistados terem os seus costumes e religiões próprias-os EUA nem isso. Há que converter os dominados em democratas, só assim é que conseguirão vender muitos hamburgers e muitas pipocas para o novo filme da Nicole Kidman que nem sequer é americana. Há uns dias apanhei um taxista esclarecido a vir para casa que me disse: “Dizem que precisamos ajudar os americanos, pois, mas quando a Indonésia invadiu Timor os americanos sabiam e nada fizeram”. Mesmo que despreze todos os tipos de colonialismo ainda lhe disse mais: eles não só sabiam. Sim, foram eles que deram o aval, a televisão portuguesa mostrou há uns dois anos um documento da CIA, só agora revelado, que veio a tornar público aquilo que já toda a gente sabia. O secretário de estado americano, Kissinger, um sionista, deu o aval para a Indonésia invadir Timor, sendo o preço da chacina saldado com o sangue de portugueses e de gerações de timorenses. Não que isso fosse grande novidade ou que isso possa chocar minimamente alguém. Aliás, o assunto até foi completamente negligenciado pela comunicação social e pelos políticos. Acham que isso importa? Quem nos salva do que nos tem salvo? A invasão do Iraque criou mais terroristas ou criou menos? Aliás, ser-se terrorista depende apenas do lado do barril de pólvora que se está. Não quer dizer nada. Tal como democracia. Quer dizer ainda menos. Tal como no Iraque, promovem um fantoche local contra quem vão ter de lutar daqui a 10 anos. Nada mais que um ciclo. Aliás, o terrorismo, mais do que às pessoas que lutam por esta ou aquela causa, interessa antes de tudo aos estados como os EUA ou a Espanha. Só assim é que podem fundamentar as suas políticas de controle sobre as pessoas, repressivas e de devassa da vida singular, com base em argumentos como a segurança ou a paz. Fraude, apenas retórica de pasquim. Desta maneira têm sempre um inimigo, alguém a quem deitar as culpas. E qual é a piada de um mundo sem inimigos? Nem nas novelas da TVI! Desta maneira o terrorismo de alguns justifica sempre o terrorismo de estado e vice versa. Precisam ambos um do outro. Alimentam-se. Quem não faz parte do jogo é apenas carne para canhão. Exemplos não faltam.
Pelos vistos o sr. Berlusconi tem uma visão diferente. Não, não culpa o governo espanhol-o que segundo a visão de cima não seria completamente infundado, a popularidade do sr. Bush também subiu depois do 11 de Setembro, convém lembrar. Não, o sr. Berlusconi continua a responsabilizar a ETA. Com base em quê? Ora, no facto dos supostos membros de uma tal Al-Qaeda serem beduínos e não terem capacidades para uma acção daquela envergadura. Então e o 11 de Setembro nos EUA? Bem, sempre podemos voltar ao facto do terrorismo interessar ao estado-não querendo cair na teoria da conspiração-desta maneira ou seria o governo ou seria o lobby judaico (não deixa de ser estranho numa cidade em que habitam tantos, em que tantos trabalham, que no 11 de Setembro nenhum judeu estivesse entre as vítimas), seria sempre um dos dois. Talvez o sr. Berlusconi quisesse dizer isso. Ou talvez... em vez de aviões a embaterem nas torres ele tenha visto camelos. Não, acho que não. Que se saiba nem o sr. Berlusconi, o sr. Sharon, o sr. Portas, ou o sr. Bush sabem voar.



Tempo de um poema...



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.



Heiner Müller

quinta-feira, março 18, 2004

Frase do dia: “À sombra de árvores mutiladas esperei”.




Delírios pela noite delirante...




“Escuta está frio demais para me contentar com o calor do teu amor que não existe na televisão uma orgia de três mulheres e dois homens não aquece nem arrefece um filme polaco dobrado em espanhol os gemidos espraiem-se sais de qualquer maneira para o velho bar que está para abrir falência já não tens jeito ao balcão Deus não é uma mulher que tu possas seduzir desesperado e triste contentas-te com um minete ao Diabo”.



RMM

quarta-feira, março 17, 2004

Frase do dia: “Compreender o desistir quando já se desistiu de compreender”.



POSTULADOS E MODUS OPERANDI, ou a luta pela luta mesmo que já nem se saiba como e com quem se está a lutar


Falar com uma parede não significa que ela não responda.

Dar-lhe com a cabeça também não significa que ela não parta.


No início da escravatura no continente americano a maior parte da força escrava utilizada era autóctone. Ou seja, era índia. Sendo os índios os donos da terra que estava a ser colonizada a sua tendência foi lutar contra esta situação e renegaram ser escravizados numa terra que era sua.
Isto não abalou os colonizadores, viraram-se para a África que já tinham invadido e começaram a trazer escravos negros. Para os colonizadores era apenas uma questão económica: 1 índio + 1 índio= 1 negro
Desta maneira, baseando-se também nas ditas capacidades físicas dos negros, foram estes que começaram a trazer nos seus navios negreiros de carne a retalho.
Para os africanos a situação era diferente. Eram escravos na sua própria terra (vendidos como mercadoria) e agora eram escravos na terra de outros. O seu peso à terra era diferente do dos índios que eram livres e renegaram essa mesma escravatura para continuarem a ser “livres” nas suas terras, mesmo que desapropriados das mesmas.
Ora, o que é que História nos mostrou? Os índios morreram quase todos ou vivem confinados em reservas, um ou outro espalhado sabe-se lá por onde. Assimilados, na melhor das hipóteses, numa espécie de genocídio cultural.
Os negros sobreviveram e as sociedades americanas são cada vez mais negras ou mestiças (em população, não em Poder). Note-se que quando o tráfico de escravos foi interdito para o continente americano a prática dos senhores neo-feudais passou a “incentivar”, ainda mais, a procriação de escravos em cativeiro. Desta maneira, mesmo com tantas chagas abertas, a população escrava poder-se-ia manter durante muito tempo.

Com base no exemplo coloca-se esta questão: A morte ou a escravatura?

A um indivíduo isolado é sempre mais fácil escolher a visão romântica que é a primeira, a do índio, antes sempre a morte.
Para um suposto grupo (ou "espécie", ou o que se determine como sendo um país) a sobrevivência nunca pode ser pensada no imediato.

No entanto qualquer uma das situações é tão perversa quanto a outra. O único peso reside naquele que tem o chicote. Não lhe interessa nem uma nem outra.
Para ele só há uma questão: Quem serve? Se não for um há-de sempre haver outro. Esta é a pergunta primeira e ela é que fundamenta a outra. Tal como hoje...

Ao anulá-la aquela que a precede nem sequer se coloca.


Tempo de um poema...


As mãos crispava sob o meu xale escuro...
Por que estás hoje tão pálida?
- Por minha culpa ele saiu daqui infeliz
e cheio de amargura.


Nunca esquecerei quando partiu,
a ruga da sua boca crispada;
eu desci a escada a correr
e voltei a encontrá-lo ao portão.


Sem alento, gritei: «Não era a sério
nada. Se te vais morrerei.»
O seu sorriso era calmo e sinistro
ao dizer-me: «Não fiques na corrente de ar.»



Anna Akhmátova

terça-feira, março 16, 2004

Frase do dia: “Se era só fumo sem fogo por que é que estão as mãos a arder?”



HOUSE WHERE NOBODY LIVES


There´ s a house in my block
that´s abandoned and cold
Folks moved out of it a
long time ago
and they took all their things
and they never came back
Look´s like it´s haunted
with windows all cracked
and everyone calls it
the house where
nobody lives.

Once it had laughter
Once it held dreams
Did they throw it away
Did they know what it means
Did someone´s heart break
or did someone do somebody wrong?

Well the paint was all cracked
It was peeled off of the wood
Papers were stacked on the porch
where I stood
and the weeds had grown up
just as high as the door
There were birds in the chimney
and an old chest of drawers
Looks like no one will ever
come back to the
House where nobody lives

Once it had laughter
Once it held dreams
Did they throw it away
Did they know what it means
Did someone´s heart break
or did someone do somebody wrong?
So if you find someone
someone to have, someone to hold
Don´t trade it for silver
Don´t trade it for gold
I have all of life´s treasures
and they are fine and they are good
They remind me that houses
Are just made of wood
What makes a house grand
Ain´t the roof or the doors
If there´s love in a house
It´s a palace for sure
Without love...

It ain´t nothing but a house
A house where nobody lives
Without love it ain´t nothin
But a house. A house where
Nobody lives.



Tom Waits



segunda-feira, março 15, 2004

Frase do dia: “A máscara de alguém que ri é sempre a máscara de outro alguém que chora”.


POEMA ANTIGO


De noite atravessando o lago a nado o momento
Que te põe em causa Já não há outro
Finalmente a verdade Que tu mais não és que uma citação
De um livro que não escreveste
Podes escrever uma vida para negar isto na tua
Fita de máquina descorada O texto lê-se à transparência


Heiner Müller

sexta-feira, março 12, 2004

Frase do dia: “Preciso de ti mas já não to sei dizer”.



“A fórmula esgota-se de dia para dia cada vez mais difícil disfarçar que a máscara é de barro e que o gigante usa andas ao estilo das feiras por mais que tu queiras não passarás incógnito pelo barqueiro não passarás o teu corpo transforma-se não voltarás a montar o cavalo de fogo escreves poemas escreves a tua vida em papel higiénico este de certeza não será o lugar nem o tempo para acariciares com as mãos a serpente de plumas a verdade não está nem em ti nem no outro envelheces mas ainda virá o roupão e os chinelos a internet é a falsa porta dos fundos da mansão percorres com os pés descalços os labirintos do silêncio o copo junto aos lábios o cinzeiro em que os cigarros morrem depois de te fazerem morrer mais um pouco é inútil foges de uma forma absurda das tentativas de afecto dos corpos que passam sonhas com punhais e navalhas procuras nos livros a definição de loucura mas não chega nem nunca vai chegar esta época esta cidade mais um ciclo que passa passeias às voltas contornas a rotunda de forma circular desenhando as letras desenhando os números encontras a lógica e a certeza será sempre o quinze ou o sete ou o nove esquece o dois o quatro o seis ou o dez porque estás sozinho toda a solidão é ímpar esquece os números pares aumenta o volume do rádio e escolhe o quinze e escolhe o quinze e escolhe o quinze”.



RMM

quarta-feira, março 10, 2004

Frase do dia: “Fumo para me lembrar dos teus lábios que fumam”.



O DIÁLOGO QUE SE SEGUE É DA i RESPONSABILIDADE DOS QUE SABEM QUEM SÃO MAS NÃO QUEREM SABER, e foi gravado em segredo no dia em que arranquei com uma navalha o coração do meu peito ( porque com um canivete achei que levaria mais tempo)


- Bem, só espero que não te estejas a meter noutra fria. O teatro de marionetas só interessa a quem segura as cordas.
- Ééééééééé óóóó pá!!! Também eu espero que sim. Quanto às marionetas prefiro segurá-las pelos cabelos e guardar as cordas para as prender à cama.



POSTULADOS E MODUS OPERANDI, ou sobre qualquer coisa que me esqueci o nome mas sei que tem a ver com a sociedade.


A maior parte das visões que construímos sobre o mundo que nos rodeia estão completamente inquinadas de modelos padronizados de comportamento. Dessa maneira a socialização é apenas uma parte ínfima de uma aculturação pré-determinada, enraizada em hábitos que se dissolvem em comportamentos e em pensamentos de modelo único. Nesse sentido todo o pensamento produzido à escala de um condicionamento é, na maior parte das vezes, diminuto.

Quando tentam vender a ideia de que os opostos se atraem, ou que, por exemplo, no campo da política, os extremos se situam nas pontas, o erro manifesta-se de uma forma contundente. Toda a teoria política, seja de esquerda ou de direita, resume-se quase toda às mesmas bases: papel do Estado, leis, exército, sociedade, economia, conjunto de cromos que habitam o que se considera ser um país, fronteiras, mercado interno e externo, etc. e tal, a mesma conversa. No fundo, trata-se da mesma organização social mas vista segundo uma perspectiva que não deixa de ser reducionista. A política, partidária ou não, é fértil em não construir nada de novo ou válido. Porque a rejeição de uma ordem que existe não se traduz pela construção do mesmo edifício, em que essa mesma ordem está sustentada, a partir dos seus alicerces. Mesmo que esse edifício tenha sido destruído até só sobrar o pó e os destroços. O oposto nunca se traduz na destruição ou na construção de nada, mesmo de um edifício social estabelecido.
...
Ou é a não consideração do mesmo para a análise. Ou é a inversão dele de cabeça para baixo. Ou é qualquer outra coisa.


Tempo de um poema...


Acordar tarde



tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva- e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte


procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos- e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais- nada a fazer


irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia



Al Berto

segunda-feira, março 08, 2004

Frase do dia: “Se os vivos não te ouvem escreve para os mortos”.




Noite


Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escuridão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluem
e os homens se confundiram
com as coisas

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e de terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura


Agostinho Neto, Sagrada Esperança, 1974

sexta-feira, março 05, 2004

Frase do dia: “Prefiro mil palavras a qualquer imagem”.




QUERO SER NEGRO


Quero ser negro
ter ritmo natural
jorrar vinte pés de gordura
e montá-la também
Quero ser negro
quero ser um “pantera”
e ter uma namorada chamada Samantha
e ter um bordel de putas sifilíticas
oh, oh, quero ser negro


Não quero ser mais um estudante universitário aburguesado
tudo o que quero é ter um bordel de putas sifilíticas
Sim sim quero ser negro
oh oh quero ser negro
sim sim quero ser negro

Quero ser negro
Quero ser como Martin Luther King
e deixar-me matar na Primavera
e representar uma geração inteira- e lixar os Judeus-
Quero ser negro
Quero ser como Malcolm X
também como todos os presidentes Kennedy
e ter grandes remorsos também...



Lou Reed



quinta-feira, março 04, 2004

Frase do dia: “O Teatro de Marionetas só interessa a quem segura as cordas”.



POSTULADOS E MODUS OPERANDI, ou qualquer coisa de luta por qualquer coisa qualquer coisa qualquer coisa de luto



Todos os dramas da espécie humana são vividos ao nível pessoal, mas para a história do Homem isso significa muito pouco, ou ainda menos.



A Verdade é como a História, traduz-se apenas na versão contada pelos descendentes dos que venceram, ou pelos diversos macro ou micro poderes geográficos, não interessa. Nunca existiu verdade histórica, grande parte das nossas referências são construídas por cima de falsos pressupostos, visões parcelares, mistifica-se um passado mítico mumificando as hipóteses de um qualquer futuro utópico.



Sempre que olho para um Homem imagino sempre o seu cadáver.


Qualquer pessoa era capaz de matar pelo preço certo. Todas as pessoas o têm. Esconde-se dentro da máscara de cera a que dão o nome de sanidade mental ou ética, mas lá no fundo, no fundo... qual é o teu preço? Aqueles a quem a sociedade chama criminosos vulgares são os que apenas não estão em condições de negociar nada.


A força de um Homem traduz-se pelo preço que pede e nunca pelo preço que paga.


Um Homem (continuando a utilizar esta designação errada do poder machista) nunca pode ir de encontro a uma ideologia, mas esta pode, algures, encontrar esse mesmo Homem de passagem.


Quanto ao Sonho...



Uma vírgula no ponto errado da frase altera completamente o seu sentido. Grande parte das nossas falhas de comunicação partem de erros tão simples quanto este.



O que determina o Negro é a existência do Branco, o que determina a Sombra é a existência da Luz. Mas isso não significa que a Luz se oponha à Sombra ou o Branco ao Negro. Porque, na verdade, não são opostos. Qualquer oposto de qualquer coisa que exista traduz-se apenas na não existência. O Ser ao Não Ser, mas nunca o Eu ao Outro, ou a Identidade à Alteridade. Porque eu sou simultaneamente o Eu e o Outro, a Sombra e a Luz, o Branco e o Negro e todo o conjunto puzzle de fragmentos de milhares e milhares de cores e cores. O que se opõe ao Eu é o Não Eu, quem determina essa cisão é o meu grau derrapagem em direcção ao abismo. Isto não é novidade, grande parte das tretas existencialistas batem sempre nestas mesmas teclas.


Anomia (Durkheim)- Se Eu me matasse não teria bem a certeza sobre quem eu estaria a disparar.


Deixo-vos com um poema, seja lá o que isso signifique


pode não ser sempre assim; e eu digo
que se os teus lábios que amei tocarem
os de outro, e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração, como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço, ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que, dizendo demasiado,
permanecem desamparadamente diante do espírito ausente;

se assim for, eu digo se assim for-
tu do meu coração, manda-me um recado;
para que possa ir até ele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
E então voltarei o rosto, e ouvirei um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.

E.E. Cummings

terça-feira, março 02, 2004

Frase do dia: “Somos o que não mostramos”.


“Eles despem dos quadros as paredes do café do teatro o foyer e ainda as lembranças que se sobrepõe à ressaca de não sei quantos e quantos graus de álcool pelas veias mas mesmo assim ainda antes da noite de ontem e de todas as outras noites entraste pela porta aberta da tenda da feira das bruxas o homem do tarot é igual ao psicólogo do hospital e da psicoterapia as cartas sobre a mesa azul a toalha como a cortina sobre os sonhos que avançam aos tropeções e aos bocados como fragmentos estilhaços granadas que arrebentam sobre as mãos dos poetas e dos profetas lemos nos jornais e nas cartas na televisão e no rádio escuta como os sons te perseguem ainda pelas esplanadas observando batendo e rebatendo as verdades sobre a encenação das nossas vidas que passam”.



RMM

segunda-feira, março 01, 2004

Não.


O DIÁLOGO QUE SE SEGUE É DA i RESPONSABILIDADE DOS SIAMESES CISMADOS, e foi gravado em segredo num dia qualquer de um qualquer mês de Março

- Como é que te sentes?
- Intermédio, a solidão no meio do seu desespero apático, frise-se esta palavra, consegue a espaços criar momentos de harmonia.
- Como um organismo que se regenera?
- Como qualquer coisa... mas a pata do animal está completamente dilacerada.
- Ainda esperas por ela? Seja lá o que signifique esse Ela?
- Ou seja lá o que signifique a espera. Ainda me sinto ansioso, deveras ansioso, talvez do nada... mas tu sabes tão bem quanto eu: até o nada necessita ser justificado.
- E amanhã? Ainda vais às finanças? O teu dilema é se irás, ou não, de táxi para o Cais. Atrapalha-te um pouco, tens de confessá-lo, a tua barba por fazer. Como passar o resto da tarde... se tiveres algum resto de tarde. Os teus olhos não me parecem nada bem, estão todos vermelhos, inchados, parecem brilhar...
- Evidentemente, sinto-me decadente e em queda abrupta, envelhecido, a perder capacidades para o flirt com a vida...
- Tédio intelectualóide? Não foi assim que o cabrão do teu amigo H chamou ao teu discurso?
- Talvez, se é que existe tédio que não seja intelectual. Os intelectuais inventaram o tédio, eu não sou um intelectual, detesto os intelectuais, sou um homem do grés vermelho...
- Pois. E a S? Andas a cobiçá-la?
- Talvez, não sei, apenas porque procuro um mínimo. Para que nada não tenha que ser apenas nada.
- E as aulas? Tiveste que preparar a última mesmo em cima da hora...
- ... e o regresso a Coimbra, a viagem hipotética de metro com as estações a sucederem-se e nada a resultar em nada... A carta da morte dizia para eu romper o ciclo...
- Como se ela viesse, se é que ela irá ou virá, ou melhor, se é que ela irá nesse metro se for à aula...
- Como se as histórias fossem sempre as dos outros e as minhas se tenham tornado em algo baço que logo se torna esquecido...
- Tudo isso e mais alguma coisa no meio de nada disso...
- Já não temos a neurose de antes, é pena...
- Porque nos estamos a tornar...
- ... num único...
- ...eu...
- ...apenas.


“Ken Ki Ma Bô Leña Ta Ma Bô Sinza”.

“Quem é mais lenha do que tu também é mais cinza.”





This page is powered by Blogger. Isn't yours?

disakala@hotmail.com