segunda-feira, junho 21, 2004
Frase do dia: “O síndroma da mulher que se apaixona pelo condenado à morte”.
pequeno conto
perguntando luna
Um dia, ou num dia, como este, assim, solarengo e longo de espaçadas horas longas que demoravam a passar, vivia um homem, de 30 anos, numa pequena aldeia, numa pequena cabana, num pequeno refúgio, mas junto ao mar. Ele era marinheiro. Era do mar que ele vivia. Todas as madrugadas acordava e montava a sua pequena rede para ir pescar, no seu pequeno barco, na sua pequena vida, no seu pequeno embalar, ao seu imenso mar. Porque era do mar que ele vivia. Do mar e dos seus peixes.
Um dia assim, como este, assim como este, ele saiu para o mar e, desta vez, porque o peixe começara a rarear no seu percurso quotidiano de pesca, ele resolveu aventurar-se um pouco mais para longe. Para longe, para mais longe, e para o mais mar adentro. Chegou a um sítio em que as águas eram muito límpidas. Ele nunca lá havia estado. Olhou as águas como quem procura o amor que naufragou algures, como quem procura um velho tesouro de imaginação de criança, como quem procura apenas o procurar. E ele olhou as águas e... quanto não foi o seu espanto quando ele viu, com uma nitidez cristalina, uma sereia espelhada nas mesmas águas, uma criatura mulher e peixe, uma criatura mágica que o olhava. Mas... aquilo assustou-o. Ele era apenas um homem simples e temia o estranho. O estranho a ele, estranho àquilo que não reconhecia e com que não se identificava. Remou o mais rápido que pôde para a costa. E voltou. De mãos vazias.
Passaram-se alguns dias e ele tinha que voltar ao mar. O mar era o seu sustento e ele não sabia fazer mais nada na vida. Voltou no seu pequeno barco, outra vez, outra vez, pelo mar adentro outra vez. Ele não queria voltar ao sítio das águas límpidas, o sítio onde vira a sereia, mas como o peixe era cada vez mais raro, mais uma vez ele voltou ao mesmo sítio. Ali mesmo. Ali mesmo onde imaginas. E ele não queria encarar as águas, porque tinha medo, queria apenas jogar a rede de olhos vendados, pescar o mais que pudesse e partir, pois tudo aquilo lhe fazia uma confusão extrema. Nunca vira nada assim. Criaturas como aquelas não existiam. Talvez fosse apenas uma insolação causada pelo sol forte. Pelo sol forte como este. Pelo sol forte como num dia como este. E ele iludia-se com este pensamento até que um raio de sol quente, isqueiro de fogo, nos seus olhos os fez baixar. E ele baixou-os na direcção das águas. Esfregou-os a custo e... outra vez. Ali, nas águas límpidas e cristalinas, era outra vez a sereia, era outra vez ela que olhava para ele. E mais uma vez aquilo o perturbou. Mais uma vez remou o mais rápido que pôde até à costa. Mais uma vez voltou. Mais uma vez pensou não voltar nunca mais. Nunca mais. Ao mar.
E os dias foram passando. A fome já começava a ser alguma e ele precisava trabalhar. Mas a fazer o quê? Ele só sabia pescar. Apenas. Só sabia pescar. E só sabia pescar. Apenas.
Resolveu ir até à aldeia à procura de trabalho. Tinha dois braços e duas pernas, talvez conseguisse alguma coisa. Mas, mesmo se o conseguisse, ele sentia que nunca poderia ser mais o mesmo. Porque ele amava o mar. Mas sentia que este o estava a trair. A traí-lo com visões do que não existia, a enlouquecê-lo, a fazerem-no ter medo, a não ser mais bem vindo. Não se atrevia a contar aquela história a quem quer que fosse. Iam-no tomar por louco, iam mandá-lo procurar um médico. E ele sofria com aquilo. As pessoas perguntavam o porquê de ele não voltava mais ao mar e ele, envergonhado, encolhia os ombros. Não sei, um dia. Um dia hei-de voltar. Mas duvidava. Que existisse. Esse mesmo. Um dia.
Ao chegar à aldeia deparou-se com uma grande agitação. As pessoas estavam todas reunidas na velha, mas grande, praça, todas numa grande algazarra, todas numa grande confusão. O que foi, perguntou a alguém. O mesmo alguém respondeu: É o mercador de sonhos. Ele voltou outra vez. Olha para as coisas bonitas que ele trouxe. Mas ele não conseguia ver nada. Rompeu pelo meio da multidão e irrompeu até ao centro. O centro onde estava. O mercador de sonhos. E as grandes novidades que trazia. O mercador de sonhos olhou para o marinheiro. Bom dia amigo, queres ver a grande novidade que trago para vós? Nunca viste nada assim! Sim, respondeu ele. Hesitante. E o mercador de sonhos sorriu. Sorriu e fez desfraldar o grande objecto que trazia. As pessoas suspiraram de espanto. Nunca tinham visto nada assim. Nunca tinham visto um espelho. O marinheiro encolheu-se sentindo o sorriso do mercador de sonhos. Olha, olha para lá, disse este. E o homem olhou. E por pouco não morreu de susto. Porque não era no mar que ele estava. Porque não era debaixo de um sol tão forte. Porque não era só ele que ali estava. Porque não eram as águas límpidas e cristalinas. E porque sem todos estes mesmos porque... era a sereia que, outra vez, ele via. Só que agora no espelho. Sentiu-se cambalear, estava definitivamente louco, não havia dúvida alguma. Louco!? O que seria da sua vida agora? Já não conseguia estar no mar e, agora, já nem sequer na terra ele conseguia. Afastou as pessoas ao redor de forma brusca sem pedir licença e, já fora da velha praça, desatou a correr e a correr. A correr em direcção à montanha, a correr em direcção à falésia. E, lá mesmo em cima, tendo o mar lá embaixo como um enorme abismo, deixou-se oscilar na ponta do precipício com as pontas dos pés. Os pensamentos dançavam na sua cabeça. A história da sereia estava a acabar com a sua sanidade mental. O que é que seria dele agora? O que é que iria fazer da sua vida? Nada. Sentia que não conseguiria fazer mais nada.
Então...
Deixou-se cair. Deixou-se cair no mar.
E passaram dois segundos em que ele não veio à tona. E passaram dois minutos em que ele não veio à tona. E passaram duas horas em que ele não veio à tona. E passaram dois dias. E passaram dois anos. E o tempo foi passando, mas ele não morreu.
Porque ele era uma sereia.
Porque os marinheiros só existem na imaginação das sereias.
Ricardo Mendonça Marques
pequeno conto
perguntando luna
Um dia, ou num dia, como este, assim, solarengo e longo de espaçadas horas longas que demoravam a passar, vivia um homem, de 30 anos, numa pequena aldeia, numa pequena cabana, num pequeno refúgio, mas junto ao mar. Ele era marinheiro. Era do mar que ele vivia. Todas as madrugadas acordava e montava a sua pequena rede para ir pescar, no seu pequeno barco, na sua pequena vida, no seu pequeno embalar, ao seu imenso mar. Porque era do mar que ele vivia. Do mar e dos seus peixes.
Um dia assim, como este, assim como este, ele saiu para o mar e, desta vez, porque o peixe começara a rarear no seu percurso quotidiano de pesca, ele resolveu aventurar-se um pouco mais para longe. Para longe, para mais longe, e para o mais mar adentro. Chegou a um sítio em que as águas eram muito límpidas. Ele nunca lá havia estado. Olhou as águas como quem procura o amor que naufragou algures, como quem procura um velho tesouro de imaginação de criança, como quem procura apenas o procurar. E ele olhou as águas e... quanto não foi o seu espanto quando ele viu, com uma nitidez cristalina, uma sereia espelhada nas mesmas águas, uma criatura mulher e peixe, uma criatura mágica que o olhava. Mas... aquilo assustou-o. Ele era apenas um homem simples e temia o estranho. O estranho a ele, estranho àquilo que não reconhecia e com que não se identificava. Remou o mais rápido que pôde para a costa. E voltou. De mãos vazias.
Passaram-se alguns dias e ele tinha que voltar ao mar. O mar era o seu sustento e ele não sabia fazer mais nada na vida. Voltou no seu pequeno barco, outra vez, outra vez, pelo mar adentro outra vez. Ele não queria voltar ao sítio das águas límpidas, o sítio onde vira a sereia, mas como o peixe era cada vez mais raro, mais uma vez ele voltou ao mesmo sítio. Ali mesmo. Ali mesmo onde imaginas. E ele não queria encarar as águas, porque tinha medo, queria apenas jogar a rede de olhos vendados, pescar o mais que pudesse e partir, pois tudo aquilo lhe fazia uma confusão extrema. Nunca vira nada assim. Criaturas como aquelas não existiam. Talvez fosse apenas uma insolação causada pelo sol forte. Pelo sol forte como este. Pelo sol forte como num dia como este. E ele iludia-se com este pensamento até que um raio de sol quente, isqueiro de fogo, nos seus olhos os fez baixar. E ele baixou-os na direcção das águas. Esfregou-os a custo e... outra vez. Ali, nas águas límpidas e cristalinas, era outra vez a sereia, era outra vez ela que olhava para ele. E mais uma vez aquilo o perturbou. Mais uma vez remou o mais rápido que pôde até à costa. Mais uma vez voltou. Mais uma vez pensou não voltar nunca mais. Nunca mais. Ao mar.
E os dias foram passando. A fome já começava a ser alguma e ele precisava trabalhar. Mas a fazer o quê? Ele só sabia pescar. Apenas. Só sabia pescar. E só sabia pescar. Apenas.
Resolveu ir até à aldeia à procura de trabalho. Tinha dois braços e duas pernas, talvez conseguisse alguma coisa. Mas, mesmo se o conseguisse, ele sentia que nunca poderia ser mais o mesmo. Porque ele amava o mar. Mas sentia que este o estava a trair. A traí-lo com visões do que não existia, a enlouquecê-lo, a fazerem-no ter medo, a não ser mais bem vindo. Não se atrevia a contar aquela história a quem quer que fosse. Iam-no tomar por louco, iam mandá-lo procurar um médico. E ele sofria com aquilo. As pessoas perguntavam o porquê de ele não voltava mais ao mar e ele, envergonhado, encolhia os ombros. Não sei, um dia. Um dia hei-de voltar. Mas duvidava. Que existisse. Esse mesmo. Um dia.
Ao chegar à aldeia deparou-se com uma grande agitação. As pessoas estavam todas reunidas na velha, mas grande, praça, todas numa grande algazarra, todas numa grande confusão. O que foi, perguntou a alguém. O mesmo alguém respondeu: É o mercador de sonhos. Ele voltou outra vez. Olha para as coisas bonitas que ele trouxe. Mas ele não conseguia ver nada. Rompeu pelo meio da multidão e irrompeu até ao centro. O centro onde estava. O mercador de sonhos. E as grandes novidades que trazia. O mercador de sonhos olhou para o marinheiro. Bom dia amigo, queres ver a grande novidade que trago para vós? Nunca viste nada assim! Sim, respondeu ele. Hesitante. E o mercador de sonhos sorriu. Sorriu e fez desfraldar o grande objecto que trazia. As pessoas suspiraram de espanto. Nunca tinham visto nada assim. Nunca tinham visto um espelho. O marinheiro encolheu-se sentindo o sorriso do mercador de sonhos. Olha, olha para lá, disse este. E o homem olhou. E por pouco não morreu de susto. Porque não era no mar que ele estava. Porque não era debaixo de um sol tão forte. Porque não era só ele que ali estava. Porque não eram as águas límpidas e cristalinas. E porque sem todos estes mesmos porque... era a sereia que, outra vez, ele via. Só que agora no espelho. Sentiu-se cambalear, estava definitivamente louco, não havia dúvida alguma. Louco!? O que seria da sua vida agora? Já não conseguia estar no mar e, agora, já nem sequer na terra ele conseguia. Afastou as pessoas ao redor de forma brusca sem pedir licença e, já fora da velha praça, desatou a correr e a correr. A correr em direcção à montanha, a correr em direcção à falésia. E, lá mesmo em cima, tendo o mar lá embaixo como um enorme abismo, deixou-se oscilar na ponta do precipício com as pontas dos pés. Os pensamentos dançavam na sua cabeça. A história da sereia estava a acabar com a sua sanidade mental. O que é que seria dele agora? O que é que iria fazer da sua vida? Nada. Sentia que não conseguiria fazer mais nada.
Então...
Deixou-se cair. Deixou-se cair no mar.
E passaram dois segundos em que ele não veio à tona. E passaram dois minutos em que ele não veio à tona. E passaram duas horas em que ele não veio à tona. E passaram dois dias. E passaram dois anos. E o tempo foi passando, mas ele não morreu.
Porque ele era uma sereia.
Porque os marinheiros só existem na imaginação das sereias.
Ricardo Mendonça Marques
Comments:
Enviar um comentário